sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

ODE ao GATO


ODE AO GATO

(Artur da Távola)

Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso.
Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam.
O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência,
obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.
Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu.
Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado?
Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão,
uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe
São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?
Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens
de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante
veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as
agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre
se amesquinham na jaula. Gato não. Ele só aceita uma relação de independência
e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado
de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.

"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto
com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque
precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio,
que é dele e ele o dá se quiser.
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio,
é espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação
que não é inação. Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem ama,
mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.
Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente,
é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato
é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se
comporta como um lorde inglês.
Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato.
Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação
precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona
com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso.
Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou
substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe.
E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós
queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega,
de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa
um julgamento.
O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia
real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode
(ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós).
Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta.
Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali".
Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe,
olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que
nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.

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