quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Negócios coloniais


Negócios coloniais

Sitônio Pinto


Uma coletânea de documentos dos séculos XVII-XVIII, editada pelo Ministério da Fazenda, em 1973, sob o título de "Negócios Coloniais", revela um fato estarrecedor: no ano de 1650, a população da África era igual à população da Europa, em torno de 100 milhões de almas negras e brancas; um século depois, no ano da graça de 1750, a população da África havia caído para 95 milhões de remanescentes, enquanto a Europa atingia 140 milhões de habitantes.

Tanto a África quanto a Europa forneceram os contingentes humanos para a colonização da América. A Europa foi vertente de um êxodo espontâneo, composto de fidalgos maldonados, de fugitivos do feudalismo, e do exílio compulsório dos presos políticos e dos criminosos comuns. Mas a África foi o minadouro do êxodo escravo que iria fecundar os leirões do Novo Mundo.

Em um século, os universos demográficos dos dois continentes, antes equiparados, apresentaram uma diferença de 50% entre si, correspondente a 45 milhões de habitantes a mais na Europa. A estatística não apresenta um comparativo das populações da Península Ibérica e das Ilhas Britânicas, no mesmo período; se aqueles países colonizadores sofreram deflação demográfica igual à do continente africano. Mas as duas realidades, tomadas em conjunto, apontam para a extensão da captura, seguida de genocídio, de que foi vítima o estoque racial negro.

O volume do êxodo escravo foi muito maior, como se pode deduzir da defasagem entre a inflação e a deflação demográficas da Europa e da África, respectivamente. Maior que o êxodo dos reinos europeus, o contingente africano teria sido suficiente para formar um percentual muito mais representativo no amálgama racial americano. Mas, o contingente negro, explorado como rebanho na geração de mão-de-obra escrava, não logrou superioridade numérica sobre o contingente branco na formação do espectro racial da América. A constatação deixa ver, mais uma vez, onde repousou o potencial reprodutor do elemento negro. Além dos leirões do novo mundo, o estoque racial sumiu nas covas dos cemitérios clandestinos que pontilharam a América.

A correspondência da época, fonte da crônica dos negócios coloniais, registra ainda um decréscimo na população americana naquele período, – mesmo diante do êxodo europeu e do africano. Isso ressalta três fatos: 1) a população nativa, ameríndia, que atingia 11 milhões de habitantes nos meados do século XVII, quase foi extinta; 2) o contingente negro não se reproduziu em número suficiente para repor as baixas do trabalho forçado; 3) a soma de brancos e negros não foi bastante para repor as baixas dos indígenas.


A América

teve alicerces

de ossos.

É isso mesmo: a importação e a reprodução de brancos e negros, no período entre 1650 e 1750, não substituíram o contingente índio exterminado. Ou seja: a importação de dois estoques raciais, e a reprodução de três estoques, foram insuficientes para repor o quantitativo do estoque exterminado, pois não mantiveram o nível do estoque inicial. Os números deixam ver que, se a população nativa foi exterminada, o contingente negro, – o maior dos três, – foi o que sofreu mais baixas. Quer dizer: a colonização cometeu um duplo genocídio, exterminando o estoque nativo e dizimando o estoque escravo.

A alvenaria da América teve alicerces de ossos e argamassa de sangue. Nem a Guerra dos Cem Anos matou tanta gente como um século de negócios coloniais; nem o holocausto judeu, nem os cogumelos carnívoros de Hiroshima e Nagasaki, nem o Dilúvio, nem as Sete Pragas.

Pátria de finados, o Novo Mundo morria mais que nascia.

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